Não só de sílabas poéticas vive a poesia.

Odeio a métrica
Detesto a rima
Do poeta o fardo
É ter de rimar.

Exijo uma poesia sem classe
De poetas sem qualidade
Escrita pelo barbeiro,
Pelos poetas de camiseiro
E pelo engraxate

Para qualquer um que queira
Para todos na rua da feira
Para quem tem olhos para ler
A poesia verdadeira.

Fuga nº III

Não sou daqui.
Não gosto do lugar
                      do ar
                      daqui

Não tem banho de mar
Não tenho meu par
Não tem ninguém a me amar

Quero mudar

Eu fui, já parti
Não sou mais daqui

Mas sei que vivi.

Afogar.

Flutuava na imensidão azul. Subia e descia com a espuma branca da onda quebrada. Escorria mar de seu nariz e ouvido. Estava, enfim, em casa.

A Chave.

Saudou-me como uma velha amiga. Deitamos-nos na grama fofa e falamos. Falamos da vida, falamos da morte. E falamos. Quando o silêncio veio, não trouxe desconforto: chegou quente, abraçou nossos corpos e nos uniu ainda mais. Fiz menção em falar, mas a voz morreu na garganta: a palavra saiu só.  Pairou no ar por um instante para depois cair e quebrar no chão. Dei de ombros. Ele me sorriu com os olhos e minha boca beijou-lhe o rosto corado. Rimos-nos. A despedida foi lenta e baixa, um murmúrio melancólico de adeus. Seguimos cada qual o seu caminho. Deveria tê-lo dito que me era a chave mestra. Era tudo o que eu precisava.

Um.

Feito barro
Quero me moldar no teu corpo
À tua imagem e semelhança

Me bordar em ti
Costurar minh'alma na tua
Dar um nó cego pra ficarmos grudadinhos

Acho que só assim
Tão perto
Tão junto

Seríamos só
Seríamos um.

Nós dois.

Não a morte, mas a vida encarregou-se de nos separar. Do beijo úmido e quente fizeram-se a distância e a secura das bocas. Como estranhos, sem carinhos ou toques, vemos-nos nas ruas em meio às multidões. A carência em seus olhos, o pranto sufocado em minha garganta: não havia choro, não havia vela, não havia nada senão a lembrança de outrora, do tempo bom. E isso é tudo o que ainda nos une: o retrato, os desenhos, o livro há muito esquecido em sua penteadeira.

Metalíngua.

O que me falta são palavras à boca: estão todas em minhas mãos. Muito me custa o ato de falar: pesaroso, incômodo. Acabo por tropeçar em minhas vírgulas e cair no desespero. Já não escrever. Ponho-me à mão o lápis e tudo flui sem esforço, como se eu própria não fosse necessária para tal façanha, mas mera opção do acaso. Da maneira como o vento sopra, como o rio corre, como a flor cheira, como o olho pisca, como a chuva escorre, eu escrevo. Para bem ou para mal, é esse o meu ofício.

Ah, o verão.

No bafo quente daquela tarde de domingo, eu me deitava no chão de pedra de sua casa. O ventilador de teto se remexia na quentura da sala e a enchia de um tec-tec incômodo: um mal necessário. Nas veias, o sangue nos fervia, borbulhava ardido feito brasa, fazendo-nos delirar. Sua boca fria d'água que acabara de beber tocou de leve meu pescoço, arrepiando-me inteira. Jogou-se ao meu lado buscando resfriar o corpo quente. Ficamos ali, estendidos, e ficamos. O sol rebentava na janela, nosso suor escorria e se encontrava, misturando-se tal qual nós próprios. Ao fim, separamo-nos. Se não fosse o beijo cálido que nos selara o compromisso, diria que eu não fora a primeira escolha para representar aquele papel.

O que eu acho sobre amar.

O amor que se dá e o amor que se recebe não são um par ação e reação. Apesar de serem exercidos por/sobre dois diferentes corpos, seguirem a mesma direção e sentidos opostos, não têm, necessariamente, o mesmo módulo.  Acontece que o ser humano (eu, você, todos nós) busca a relação perfeita, a qual o amor dado e o amor recebido são de mesma intensidade. Falta-nos maturidade para compreender que, boa parte das vezes, essa relação se estabelece de maneira assimétrica. Talvez, um tantinho menos de ingenuidade bastaria para compreender que nossos corações batem em frequências diferentes, ou seja: que cada um sente de modo singular. Portanto, não cobre um amor tal qual o seu, dê-se sem esperar-se de volta. Afinal de contas: os campos não são tão verdes para os que são amados como para os que não são.

Hélio.

Na transcendência fantasmagórica de um suicídio, a elevação da alma se assemelha a um balão de hélio que uma criança deixou escapar por entre seus dedo engordurados. Sobe leve, lento, invisível em sua pureza, até explodir de pressão no alto azul do céu.

Na linha.

Cambaleava como um bêbado o trem. Olhei janela afora e vi. Vi um céu nublado, branco que doía os olhos. Voltei-me à menina. Aquela ao meu lado. Não te falei? Pois bem: seus cabelos escuros emolduravam a face clara de algodão. O olhar, tão claro e cinza e fundo, encarava o vazio pela janela. Por um instante, juro que me olharam. Uma tatuagem malfeita enfeitava seu antebraço esquerdo. "Uma vez amei, julguei que me amariam". De um dos Fernandos. Mirei seu rosto outra vez. Os olhos eram grandes e separados, e a boca parecia não ter sido feita para sorrir, mas, ainda assim, sorria. Um leve sorriso de canto de boca, mas sorria. Oh, por que raios sentara eu ao lado daquelas coxas roliças? Quisera eu tocar, quisera eu sentir, mas não o fiz. Levantou-se, então, e saiu, como quem nada quer. Como pudera me deixar? Bufei e acomodei-me no lugar que ela antes ocupava. Estava quente de seu corpo. Olhei meu relógio e ao horário suspirei. A viagem ainda era longa e como um bêbado ainda cambaleava o maldito trem.

Alto-mar.

Seu corpo febril no meu congelou o tempo. O relógio parou, desistiu de seu dever. Tirou férias eternas, voltou num minuto. E quando voltou, pude sentir seu coração batendo ao passo do meu. Nossos corpos juntos como um, nossos lábios unidos por um suspiro. Naquele beijo quente, sua saliva escorreu pelo meu queixo, um fio de vida descendo pelo corpo, umedecendo minha pele de você. O fio cresceu e cresceu. Já não era mais fio, era mar, era fim. Afoguei-me em sua boca e você morreu comigo, morto de prazer.